Recensão crítica sobre o livro De Memórias nós Fazemos de Violante Saramago Matos

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20 de Setembro, 2022

Violante Saramago Matos, De memórias nos fazemos, Porto, Edições Esgotadas, 2022, 130p.


De Memórias Nos Fazemos começa por ser uma homenagem de Violante Saramago Matos a José Saramago. A autora está em busca tanto do homem e autor real, o pai que escreve, pensa, cria, age, como de si própria, mulher adulta que é capaz de ir ao passado em busca do tempo irremediavelmente perdido mas que continua, em muitos aspetos, vivo no presente. Bióloga e escritora, Violante Saramago Matos sabe que na vida não há propriamente cisões; há devir, movimento sem fim.
Neste livro, Violante Saramago Matos, também pintora, mulher de ideias e ação que em jovem se opôs à ditadura e disso sofreu as consequências (esteve presa três meses na infame prisão de Caxias, em 1973), evoca memórias de diversas fases da sua vida. A autora dialoga com as suas memórias, mais e menos recentes, e evoca o pai, mas também a mãe (Ilda Reis, Prémio Europeu das Artes), a sua infância, a sua adolescência, a sua vida adulta.
Em particular, vemos como José Saramago, antes e depois do Nobel, enquanto pai, homem e cidadão empenhado, está completo e íntegro na obra que nos deixou, na poesia como no romance, na crónica mais literária como na mais política, no teatro como na entrevista, no ensaio como no depoimento e no diário.
Cada vida é única e intransmissível, mais ou menos marcada por memórias que aceitamos ou rejeitamos, memórias que nos fazem e que convocamos, reconstruímos,
refazemos, reinventamos. Com essas memórias vivemos e com elas temos de saber lidar, se queremos ter uma vida mais integral. Daí o título muito sugestivo deste livro; sugestivo nas possibilidades de antecipação do conteúdo, mas também apelativo semântica e prosodicamente, graças ao recurso ao hipérbato (figura de sintaxe usada com mestria por poetas como Luís de Camões e Bocage, como é bem sabido): De memórias nos fazemos (em vez de Fazemo-nos de memórias).
Este livro é um tríptico, dobra-se em três unidades que se completam entre si e são unificadas pela dedicatória (o poema “Ao meu pai”) e pela “Nota de abertura”: “I. De
memórias nos fazemos”, com trinta e oito textos; “II. E de livros também”, com oito textos; “Mergulhos”, com um texto (“Empurrões”). Estes quarenta e sete textos são literatura do eu, mais ou menos periódica, regular, que tem a sua origem na releitura “de alguns livros do meu pai” (p. 7). A evocação de José Saramago, de episódios relevantes na relação pai-filha, é o elemento ordenador destes textos, que também são autênticas crónicas, ao mesmo tempo intimistas e de autognose, de avaliação de uma vida que ousa olhar para trás, com os riscos que isso implica, para se conhecer melhor e se reinventar no presente e para o futuro.
Violante Saramago Matos rememora acontecimentos da vida privada, mas também da vida coletiva, evoca episódios memoráveis para Portugal, a Literatura Portuguesa e a Língua Portuguesa. Por exemplo: a atribuição do Prémio Nobel da Literatura a José Saramago e os dias de Violante Saramago Matos e de José Saramago em Estocolmo, em 1998, o discurso no jantar dos Laureados, com a crítica direta e lúcida a quem, nos cinquenta anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, continuava (e continua) a não cumprir com os seus deveres (os governantes e nós, cidadãos).
O estilo deste livro, todo ele atravessado pela função catártica e pela função estética, caracteriza-se por uma bem medida articulação entre confessionalidade e reserva que nada tem a ver com o tom melodramático ou exibicionista em que os textos do eu tantas vezes incorrem. Violante Saramago Matos assume a “regra” saramaguiana da letra maiúscula para indicar uma fala. Melhor: todo o livro é uma grande fala que nos seduz também por isso, por uma oralidade solta, comunicativa, isenta de quaisquer maneirismos, continuamente à procura do tom certo, do ritmo adequado à comunicação de memórias e de pensamentos.
Não por acaso, a importância da escrita é definida numa frase lapidar. Exatamente no final, a filha refere-se a umas palavras que o pai lhe escreveu e que foram decisivas na sua vida: “Escritos, porque escrevendo diz-se mais e melhor” (p. 125. Sublinhados no original). Num tempo de ruído e de palavras que se acumulam e atropelam, este reconhecimento do valor da palavra escrita é a síntese final e memorável da homenagem a José Saramago que este livro é. Violante Saramago Matos dá-nos a ver um Saramago inteiro nas suas múltiplas vertentes: o pai atento à educação da filha enquanto criança, adolescente e jovem adulta (pai que, sem nunca apelar a castigos físicos, como era costume no tempo, soube dialogar, aconselhar e ensinar com casos reais, como se vê no episódio dos miúdos que estavam a trabalhar num dia em que a pequena Violante não queria sair da praia e, por isso, sem sucesso, tentou impor a sua vontade recorrendo ao choro); o homem político que nunca desistiu das suas convicções humanistas e de um trabalho ativo na sociedade portuguesa e mundial, antes e depois de 1998; o escritor que se fez com persistência, sem pressa, ao longo de décadas, a começar em Terra do Pecado (1947). A obra de José Saramago, o volume, mais de quarenta livros, impressiona e pode conduzir os novos leitores a uma ideia errada ou muito incompleta do percurso do escritor. Já o sabíamos, mas, com tudo o que a filha nos diz do pai, em diferentes fases da sua vida, esta evidência fica agora mais completa: Saramago não escondeu o seu pensamento, escreveu e viveu, foi consequente nos seus atos, não quis viver apenas para a sua obra.
De memórias nos fazemos é um volume de homenagem a José Saramago, recordo, como nos diz a autora. Em certa medida, é uma resposta da filha ao pai, que, em 1993, numa carta reproduzida em fac-símile no final do volume, lhe pede (como já notei acima): “Dá-me notícias que não sejam só as das chamadas telefónicas. Escrevendo diz-se mais e melhor” (p. 126. Sublinhados meu). Neste livro, Violante Saramago Matos cumpre plenamente esta que é mais uma das inúmeras e inesquecíveis máximas saramaguianas, e fá-lo até nas leituras críticas argutas de alguns dos livros de José Saramago. A autora não é crítica literária, mas isso não a impede de propor linhas de interpretação de livros como O Ano de 1993 e O Ano da Morte de Ricardo Reis que, só por si, fariam deste livro aquilo que ele já é, no seu conjunto: parte da melhor bibliografia sobre José Saramago enquanto pai, cidadão e autor que tinha tudo para não ser distinguido com o Nobel da Literatura nem para ser quem foi: um escritor e um homem de causas cívicas e éticas primeiro entre os primeiros. De memórias nos fazemos é tanto um organismo vivo como uma casa em que José
Saramago habita com a pulsação de quem não morre. A responsável por esta sobrevida é Violante Saramago Matos, a filha que, com a mesma naturalidade com que tem sido bióloga, escritora e pintora, nos convida a sermos também guardadores e herdeiros dignos desta voz universal que encanta e chora, adverte e avisa, denuncia e reprova todos os tipos de indiferença, desigualdade, abuso e violência, aspira e clama por tempos em que a harmonia e a beleza sejam a norma, não a exceção.


Carlos Nogueira

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